Pesquisar este blog

domingo, 31 de março de 2013

Pontos Cantados
1. Existem registros sobre o primeiro ponto de umbanda? Se sim, qual foi ele?
Bem, esta é uma pergunta difícil de responder porque ela abrange vários aspectos e203489 várias formas de se compreender o significado, a função e mesmo a identidade do que é o ponto cantado. Inicialmente, diremos que há somente dois tipos de pontos cantados: os de raiz e os de louvação. Os de raiz são aqueles trazidos por entidades incorporadas, ou intuídos em médiuns que possuem a capacidade de recebê-los, ou ainda, pontos antiqüíssimos, tradicionais, rezas em línguas templárias e hieráticas.

Os pontos de louvação são, em geral, esses pontos que são compostos para realmente se “louvar” os mentores espirituais. Há muitos deles que são lindíssimos, verdadeiras odes à espiritualidade e há aqueles que são somente canções ruins, sem inspiração nem musicalidade, fruto muitas vezes, infelizmente, mais do marketing oriundo desses festivais de curimba do que de inspiração espiritual. O catastrófico é que muitos desses pontos vão parar no terreiro e aí muito da parte importante da tradição acaba se perdendo, pois os pontos de raiz vão sendo substituídos por estes, os pontos antigos vão sendo esquecidos e a prática de se receber mediunicamente as cantigas vai desaparecendo. Hoje são raríssimos os médiuns que possuem essa modalidade mediúnica, talvez a mais rara de todas, chamada de psicofonia.
O ponto de raiz possui símbolos próprios do inconsciente arquetípico em sua letra e em sua mensagem. Sua construção melódica possui uma estrutura quase sempre modal em pelo menos em uma de suas estrofes, e soluções interessantes em escalas pentatônicas, com esquemas de base menor, com uso bastante comum de escalas em Dórico, Mixolídio ou até mesmo em Lócrio, embora todas as escalas existam em criativas construções que realmente comovem e despertam os médiuns para a espiritualidade e ainda, movimentam forças que podem ser consideradas como magísticas.
Mas o segredo deste sistema dos pontos cantados, sua decodificação é uma construção fechada, de acesso a pouquíssimas pessoas. Normalmente, as canções de raiz são recebidas intuitivamente através de uma tradição verbalizada que se repete de geração a geração. Lembrando que muitas vezes a tradição de um terreiro é transmitida e é reconhecida pela maneira como se entoa os cânticos, ou seja, um filho cantará ao “estilo” do pai e este cantou ao “estilo” do avô, etc.
Os pontos cantados são o livro não escrito dos cultos afro-brasileiros e são o único fator que os une efetivamente. Aqui está uma das razões dos alabês serem quase sempre colocados em segundo plano pelos pais de santo, pois a união entre templos e terreiros é conseguida facilmente entre os músicos e este poder é frequentemente cortado pelos donos das casas, para se manterem dentro de seus próprios mundos, evitando contato mais direto com outros sacerdotes. Como o músico é o único capaz de fazer isso verdadeiramente, quase sempre ele é colocado em condições de anonimato nos terreiros.
Quanto ao registro sobre o primeiro ponto, se considerarmos as cantigas das Nações africanas, há em muitos livros antigos do Brasil, de Angola, ingleses e mesmo em antigos livros de historiadores árabes menção a eles. Ortiz, autor cubano, cita vários em suas obras. João de Freitas, em seu livro Umbanda, se não me engano de 1930, já coloca a letra desse ponto de Oxalá: “Oxalá, meu Pai, tem pena de nós tem dó… etc” Leal de Souza cita muitos pontos em suas obras, que são das mais antigas da Umbanda.

Há uma gravação de 1907 de um ponto do “Exu Quirombô”, que é citado por muitos médiuns antigos como o primeiro Exu a se manifestar nos terreiros e do ponto “Ele pisa no toco”, que pode ser ouvida no lançamento da nossa gravadora, Ayom Records “Deixa a Gira Girar”. Há ainda, as gravações das Missões de Mário de Andrade em 1928, onde ele gravou muitos pontos de terreiros de Toré, Catimbó e Candomblés do nordeste. O ponto do Caboclo das 7 Encruzilhadas data de 1908 e há cantigas tradicionais, que são ensinadas para as crianças nas escolas, tidas como “folclóricas” que na verdade são pontos de encantaria, tais como “Peixinho do Mar”, “Marinheiro Só” “A Cobra não tem pé”, etc.
2. Em novembro será comemorado o centenário da umbanda. Houve alguma mudança significativa nos pontos durante todo esse tempo?
Como eu disse, os festivais de curimba, embora eu respeite, contribuíram muito para empobrecer os pontos, pois suas melodias e ritmos se aproximam cada vez mais do modo como se canta samba-enredo, pagode, funk e até mesmo música gospel. A intenção é criar-se um mercado para esse tipo de atividade. Os pontos cantados e os ritmos de terreiro são grandes responsáveis pela criação da maior parte da música popular brasileira – Pixinguinha, João da Bahiana, Villa Lobos, Dorival Caymmi e outros se inspiraram nas canções de terreiro para produzirem suas obras imortais. Claro que sempre há a re-influenciação, o retorno, mas infelizmente a perda de identidade dos pontos é muito clara nos dias de hoje.
3. Qual a principal diferença entre os pontos? O que os diferencia uns dos outros e o que os assemelha?
Como eu disse, há os pontos de raiz e os de louvação. Mas há aspectos mais profundos e basilares, como a métrica, o sentido da invocação da letra que é o enredo e o roteiro do ponto. Há muitos pontos de Umbanda, cantados em português, que na verdade são pontos que na antiguidade eram cantados em Kibumdo, Fon, Yourbá ou Tupi. Darei doisr exemplos: há um ponto que fala: “Meu Xangô da colina, do alto da serra, com sua licença, com sua bandeira, vamos saravá”. Provavelmente quem o escute, mesmo dentro do terreiro, não sabe que no mistério do ponto está implícito o mito Yorubá de Oba Kossô, um dos maiores mistérios do Xangô sacrificado, o símbolo máximo da transcendência através da morte, que é o encontro do iniciado com a verdade. No mito yorubá, Xangô foi enforcado no alto da colina de Kossô, perto de Oyó. É claro que esse mistério está velado na canção.Todo ponto de raiz possui um mistério que só os alabês iniciados com anos de prática conseguem traduzir e compreender.

A letra de um jongo famoso – os Jongos são a ponte entre a música de terreiro e o samba -fala de uma “Botica” (farmácia). Em determinado momento, diz: “desaforo de Camundongo, pegou vara, foi cariá, menino tá na paineira, quero vê quem vai tirá…” Explicitamente, a letra fala de alguém que tem de tomar conta de uma farmácia, e não se sente capaz disso. Fala que um ratinho petulante pegou uma madeira e foi roer e que um menino está no alto de uma paineira. Aparentemente nada faz sentido, mas o texto refere-se, secretamente, em linguagem velada, como uma louvação ao Nkice Kaviungo, o senhor das doenças e da terra, o médico dos povos Angola/Congo, sincretizado com o Omulu Yorubá. O Camundongo é um dos bichos relacionados a este Nkice, pois anda na terra e faz seu ninho com a palha, símbolo essencial de Kaviungu. A linguagem cifrada ainda diz da paineira, árvore dedicada a esta divindade

Com estes exemplos, percebe-se que canta-se, fundamentalmente, mais para o inconsciente coletivo, para a manutenção de uma idéia ancestral do que para as individualidades. Este recurso dos pontos cantados é que permitem que as tradições se preservem e sejam passadas adiante às gerações vindouras, com poucas alterações. Basta ouvir um ponto e buscar nele o fundamento que se quer.
Pontos de tradição Angola se assemelham muito a pontos de Encantaria, de origem indígena, devido ao fato dos Bantu terem sido os primeiros a chegar ao Brasil e a incluír os ancestrais da terra em seu panteão, adotando o modo de se cantar e de se louvar às divindades brasileiras, adaptando muito dos cânticos em Tupi ao Kibundo e mesmo ao português, em sua estrutura rítmico/melódica.

Nesse sentido, ritualisticamente, o branco contribuiu muito fortemente para a estrutura do canto do terreiro tanto com o modo litúrgico de se cantar da Igreja Católica quanto das sinagogas Judaicas e mesmo com os cânticos originários do paganismo Ibérico. O que une fortemente estes vários modos de canto, do negro, do índio e do branco é a estrutura modal, que vai do Canto Gregoriano aos lamentos do Kuarup e às rezas Bantu/Yorubá. Por isso, algo a ser estudado é a acentuação do modo de se cantar os pontos no Brasil. Se compararmos, por exemplo, nossos cânticos com os da África e de Cuba, cantados em Yorubá ou em Kibundo, vamos perceber que a pontuação, a acentuação, é completamente diferente. Isso se deve à influência do espanhol e do português no modo de se entoar os cânticos e evidentemente à diferença da estrutura rítmica, pois um mesmo canto na África pode ser entoado em 6/8, em Cuba em 2/2 e no Brasil em 2/4. Diferenças mínimas como essas são seriíssimas e modificam completamente aquilo que chamamos internamente dentro do aspecto iniciático dos alabês como invocação das egrégoras
4. Há algum dado exato sobre a quantidade de pontos existentes no Brasil?
Não. Este estudo nunca foi feito. Acredito que a primeira estimativa possa ser baseada em nosso acervo, que está próximo, calculo eu, das 20.000 cantigas. Mas há muito mais que isso. Muita coisa se perdeu e muita coisa surge a todo momento, pontos que são compostos e mesmo recebidos em transe por médiuns em todo o país.

5. É verdade que existe uma infinidade de letras diferentes, mas que os ritmos se mantêm quase sempre os mesmos?

Sim, há tantas letras quanto existem pontos, obviamente. Há, as vezes um mesmo ponto que pode ser entoado melodicamente de forma completamente diferente, dependendo da escola a qual pertença. Por exemplo, um terreiro do Rio de Janeiro, de origem Bantu pode cantar um mesmo ponto que se canta numa encantaria do nordeste, com a mesma letra, mas com um outro ritmo e melodia. Quanto aos ritmos, essa é uma questão especial, pois no Brasil há incalculáveis variações rítmicas de 22 bases ancestrais, que se relacionam com mistérios de tradições antiquíssimas. Muitas vezes um ritmo surge apenas por variações interessantes das vocalizações dos tambores – pois os tambores, para quem conhece seus mistérios realmente FALAM -, principalmente nas conversas dos médios e agudos, classicamente chamados de Rum e Rumpi, que procuram “cantar” a melodia do ponto, servindo como ponte para a conexão com o mundo astral através de códigos que se propagam e “atraem” a personalidade astral que se pretende invocar. Uma coisa que está se perdendo cada vez mais são as vozes dos tambores. Hoje ensina-se em escolas de curimba a tocar todos os atabaques de uma mesma maneira – quando na verdade cada atabaque possui um ritmo diferente do outro -, o que é a maior perda visível da identidade da tradição do tambor e a conseqüente descaracterização do que é o sacerdócio musical das tradições afro-brasileiras.

6. Quais são os pontos mais “populares”, mais conhecidos pelas pessoas ou mais tocados nos centros?


Existem muitos pontos “populares”, de raiz, que praticamente todos os terreiros de norte a sul do Brasil conhecem. Um deles é o ponto do Sr. Exu Tranca Ruas, o “Sino da Igrejinha”. É mais conhecido que o Hino da Umbanda, este um exemplo lindíssimo de ponto de louvação. Outro muito conhecido em vários terreiros é o de abertura, “Eu abro nossa gira com Deus e Nossa Senhora”; Das nações, talvez o mais conhecido seja um dedicado a Oxum, mas na verdade é de Ifá,que por extensão, pelo caminho dos Itáns (mitos e histórias arquetípicas dos orixás) se aproxima das vibrações desta Yabá. É aquele “Ê, emoriô, etc….”. Um ponto Bantu muito conhecido é o “Ê Maville Mavangu”. O Brasil inteiro canta. Mas disparado, o ponto mais conhecido de todos é um de Jurema, gravado por muitos cantores populares, aquele… “Marinheiro só”.

7. Qualquer pessoa pode tocar ou cantar os pontos ou é necessário ter uma preparação específica?


Normalmente a preparação se dá pela vivência, mas para se tornar um Alabê, um Onilú, um músico-sacerdote é preciso, sim, uma iniciação de muitos anos, mais de 21. Pois as invocações, as rezas, os toques, as consagrações são procedimentos extremamente sérios e profundos, mexem com o equilíbrio das pessoas. Mexem com a identidade mais secreta da estrutura do próprio terreiro onde são entoados. A iniciação final de um Alabê, para que ele seja um Onilu é coisa tão séria que antigamente tinham de estar reunidos um Babalaô, um Babalossaim e um outro Alabê consagrado. Isso tudo se perdeu completamente, infelizmente.


Caso o terreiro tenha ou não tenha atabaque (uma coisa não anula a outra. O Ayan Poolo, o espírito da música está dentro da alma do sacerdote músico. Ele sabe perfeitamente quando e como se deve usar um tambor ou não) a arte e a ciência de se invocar uma entidade é coisa muito séria. Desculpe a sinceridade, mas não é algo que se alcance em cursos de um mês, não é algo que se alcance em festivais de curimba, muito pelo contrário. Ponto cantado e ritmos sagrados não são celebrações que se assemelhem a ritmos de escola de samba (embora o samba tenha saído do terreiro), ogãs e alabês não são cargos para serem produzidos em série, como numa indústria. Repito, eu respeito quem o faça, mas há que se entender a distância entre tocar num templo e tocar num estádio de futebol, ou num salão de baile. É como se ouvir um cântico num terreiro e um cântico numa gravação. Uma coisa é gravação em disco, outra é o fenômeno vivo de um tambor consagrado soando dentro do ambiente correto, com a vocalização adequada. Pode-se tentar simular isso, em festivais, mas aí o que ocorre é uma outra coisa, não é algo sagrado, são apenas exemplos musicais do que se faz (ou não deveria ser feito) dentro do terreiro, as pessoas que se dizem ogãs e alabês tem de entender essa diferença.
Os alabês, ogãs, xicarangomas, olubatás, atabaqueiros, etc são as únicas figuras dos terreiros do Brasil que conseguem unir todos os templos sob uma única bandeira, pois a música é a trilha sonora para todos os acordos e para todas as tréguas. Se você colocar um pai de santo do Batuque do sul com um mestre de Jurema do norte num mesmo rito, provavelmente eles não vão se entender. Mas se você colocar um Tamboreiro tocando com um tocador de Ilu, eles vão se entender rapidinho, vão cantar e tocar juntos, vão se comunicar e vão se unir facilmente. É por aí que a “Banda” gira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário