Quindim: doce africano ou português?
Sempre quando falo que o quindim é um doce africano levantam-se pessoas
para defender a teoria de que na realidade seria português; que foram os
portugueses que inventaram a receita, etc., o que me deixou intrigado e
dei uma pesquisada para saber mais a respeito.
Essa
discussão já gerou polêmicas até em redes sociais, pois na religião de
matriz africana do Rio Grande do Sul, o Batuque, o quindim é largamente
utilizado e é empregado como alimento sagrado da Orixá Oxum. É daí que
surgem os questionamentos, pois como poderia um doce português ser
ofertado a uma divindade africana?
A resposta parece ser bem simples: este doce é amarelo, feito de ovos e é
doce. E todos estes elementos fazem parte do culto à Oxum. Estes
pontos, no entanto, não legitimam a teoria de que sejam africanos, pois
as religiões tradicionais africanas tiveram que ser adaptadas ao novo
contexto geográfico e tiverem que se utilizar de elementos disponíveis
aqui para a manutenção do culto. Claro que se observou algumas nuances
que ajudariam na identificação do que os Orixás aceitariam ou não em seu
culto e a cor e o sabor (azedo ou doce) foram símbolos significativos
nessa identificação.
Mas para descobrirmos se este doce é africano ou português precisamos
visitar a História da Gastronomia e entender que, muitas vezes uma
receita "matriz" pode dar origem a novas receitas gerando novos pratos.
Costuma-se afirmar que a receita original do quindim é portuguesa, pois
existe um doce luso que se chama brisa-do-lis que utiliza dois terços
dos ingredientes do quindim. Enquanto o quindim é feito de gema de ovo,
açúcar e coco ralado, a brisa-do-lis é feita de gema de ovo, açúcar e
amêndoas.
Ebô pupá - oferenda de Oxum |
Como só muda um ingrediente na receita, alguns costumam afirmar a origem lusa do quindim. No entanto, minha esposa, Patricia Peixoto,
que é profissional em confeitaria, diz que ao mudar-se algo numa
receita, mesmo que seja apenas um ingrediente, o doce já não é o mesmo e
muda até de nome. Ela nos lembra da queijadinha que é um doce feito de
gema de ovo, açúcar e queijo ralado; o papo-de-anjo é um doce feito com
gema de ovo, açúcar e fermento de bolo; o pastel-de-belém que é feito de
gema de ovo, açúcar e nata; o barquete cujo recheio é feito de gema de
ovo, açúcar e essência de baunilha; o pastel-de-santa-clara cujo recheio
é o mesmo do barquete; e os fios-de-ovos feitos com gema de ovo, açúcar
e água.
A ideia de pratos diferentes por possuírem ingredientes diferentes
embora haja uma receita "matriz" também podem ser percebidos em outros
tipos de alimentos, por exemplo: a massa feita de leite condensado e
enrolada de forma esférica, se for coberta com açúcar se chama
branquinho; se for coberta com coco ralado e um cravo passa a ser
beijinho; se for com bolinhas de arroz passa a se chamar crispys. Até a
tão conhecida torta de bolacha só é chamada assim se for feita com
bolachas do tipo maria, se for feita com a do tipo champanhe, passa a se
chamar pavê.
É claro que não podemos negar a participação portuguesa na confecção
desse doce, pois tanto o açúcar quanto o coco (e a té mesmo as galinhas)
foram introduzidos no Brasil pelos portugueses ainda no século XVI.
Especificamente o coco foi introduzido no estado da Bahia e foi lá que,
provavelmente, as africanas escravizadas criaram o doce tão popular -
afinal quem cozinhava naquela época? Não existia coco em Portugal, logo
não pode ser um doce português, ainda que a receita "matriz" seja
portuguesa. No entanto, também não existia coco em África, o que também
indica que não é um doce africano.
Mas se diz que a palavra quindim é de origem africana, provavelmente
pertencente à língua quimbundo. Então podemos concluir que o quindim é
um doce feito com receita portuguesa, com nome africano, mas criado no
Brasil por negras africanas escravizadas. É brasileiro, enfim.
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